quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Não leia esta carta


Primeiro capítulo do novo Romance de Darlan Hayek Soares, uma história repleta de suspense que vai te emocionar do começo ao fim.



1
MEU AMIGO LORENZO MORREU EM MEUS BRAÇOS. Eu não consegui evitar. Não foi nada fácil vê-lo sangrar até a morte. Ele tinha 32 anos, a mesma idade que eu. Nascemos no mesmo ano e talvez por isso tenhamos nos identificado tanto desde pequenos. Gostaria muito que nossa amizade durasse até completarmos cem anos, ou quem sabe, eternamente, como alguns costumam dizer, mas, isso não aconteceu. Aquele sangue que tantas vezes vi escorrendo dos joelhos e cotovelos ralados de Lorenzo durante nossas travessuras, dessa vez manchou minhas mãos e toda a minha roupa, mas acima de tudo manchou minha vida, minhas memórias.
            O ano era 1979. Pelo que meu pai me contou, ele e mamãe esperavam que eu nascesse em abril, talvez na metade do mês. Tanto que não tinham comprado uma fralda sequer. Tudo seria resolvido com o pagamento do mês de março, já que todo o conseguido durante janeiro e fevereiro seria empregado nas parcelas atrasadas do empréstimo que precisaram fazer quando minha mãe descobriu a gravidez. Família aumentando, casa aumentando. Precisavam de mais um quarto. Não que essa fosse a idéia à principio. Um berço ao lado da cama seria suficiente, não fosse o tamanho do quarto, minúsculo, onde cabiam apenas a cama e um armário sem portas.
            Quem olhava aquele quarto geralmente perguntava-se como alguém conseguia respirar ali.
Nossa casa ficava a mais ou menos novecentos metros do Park Daves, em Brandon, estado da Flórida. Era uma casa minúscula de fachada branca já bem suja pelas marcas do tempo. Do lado de dentro além da pequena sala onde ficavam apenas um sofá de três lugares e um pequeno rack onde apoiávamos a TV, havia uma cozinha também bem pequena, um banheiro com banheira e sanitário, e um quarto de dois metros por dois. Para minha mãe acho que deve ter sido mais difícil acostumar-se com um quarto tão pequeno, mas para meu pai, era um quarto confortável, e como ele mesmo dizia, “Um quarto até que bem grandinho”. Com a notícia de minha chegada, fizeram mais um quarto, do mesmo tamanho que o deles, e sem janela, para que eu pudesse ficar.
            Meu pai era ex-presidiário. Se é que se pode chamar assim alguém que saiu do presídio do Arizona para passar a virada do ano com os pais e nunca mais voltou. Quando deram-lhe a permissão para sair no ano novo, meus avós já eram falecidos a pelo menos nove anos. Como ele conseguiu? Eu sempre quis saber, mas ele nunca mencionou uma palavra sequer a respeito. Tudo que ele dizia era que no mundo não se podia ser bobo, ou seria cruelmente engolido. Cresci ouvindo essas palavras, mas para dizer a verdade, nunca consegui ser muito esperto.
            A cela em que meu pai cumpria pena tinha cerca de um metro quadrado. Um banco de concreto. Uma cama de concreto com um fino colchão. Um vaso sanitário. E nenhuma entrada de ar. Era fácil para quem conhecia sua história entender como ele podia viver feliz tendo um quarto minúsculo para dormir.
O que mais admiro no meu pai, é que depois de não voltar para a prisão ele tornou-se um novo homem. Aquele foi o último crime que cometeu. Algo exemplar para alguém conhecido por ser cruel ao matar casais de namorados e crianças. Isso ele não tinha medo de contar. Para ele era uma forma de ensinar-me o que nunca fazer. Os casais de namorados geralmente eram escolhidos pela diferença física, ou, explicando melhor, meu pai tinha um certo tipo de revolta com mulheres bonitas que namoravam homens feios. Para ele aquilo era uma “falta de vergonha na cara”. Já as crianças ele matava geralmente as adotadas, pelo simples fato de não terem o mesmo sangue dos pais, e é claro, às vezes matava os filhos dos casais fisicamente “não compatíveis”.
O jornal na parede do quarto dos meus pais indicava que alguém naquela casa já provara o doce sabor da fama. Lembro-me bem do título daquela matéria, a qual sempre me fazia chorar quando pequeno e talvez a responsável por eu ter  me tornado um garoto tão tímido e porque não dizer “ lerdo”, como diziam os meninos da escola.
“Matou casal e tirou foto com a vítima”.
Eu chorava toda vez que olhava para aquela foto. A menina que na época tinha dezoito anos, morta, ao lado do namorado bem mais feio que ela, e meu pai com o rosto colado ao dela, como uma forma de mostrar ao mundo que ela deveria ter escolhido alguém parecido com ele para namorar.
Era praticamente impossível acreditar em alguém que levava consigo uma câmera fotográfica instantânea e tirava uma foto mostrando o rosto, e pior, a deixava lá, na cena do crime. Eu costumava chamar aquilo de idiotice. Meu pai chamava de “Uma explicação decente à sociedade”. Mas enfim, tudo o que sei é que lá estava aquela manchete estampada na parede em uma moldura caríssima, e em baixo o apelido carinhoso que meu pai recebeu da imprensa. Charles Polaróide.
Mas, voltando ao ano de 1979, resolvi não esperar até abril, nasci em fevereiro. Mais precisamente no dia quinze. – Sete meses! - Gritava meu pai desesperado quando minha mãe avisou-lhe do rompimento de sua bolsa.
Foi a primeira vez depois de dois anos foragido que meu pai saiu de casa. Ele foi correndo a casa do vizinho da direita, Senhor Louis, o mesmo que o havia emprestado a pequena casa em que morávamos.
O senhor Louis tinha mais ou menos a idade de meu pai. Era calvo, encurvado e magro. Meu pai nunca perdia a oportunidade de dizer:
– Agradeça a esse homem por você estar vivo hoje, meu filho.
Quando meu pai fugiu da prisão pela porta da frente, não tinha noção de onde se esconderia. Então, assaltou uma senhora na rua e com o dinheiro viajou para o estado que mais tinha vontade de conhecer, a Flórida.
O senhor Louis acreditou na história que meu pai contou a ele durante a viagem. Meu pai costumava dizer que teve muita sorte ao conseguir a última poltrona disponível naquele ônibus, exatamente ao lado do senhor Louis. O pobre homem acreditou na história que meu pai inventou, dizendo que sua pequena casa fora destruída durante a passagem de um tornado. Mal sabia ele que de onde meu pai vinha era impossível passar uma rajada de vento sequer. Mas enfim, o homem ofereceu aquela pequena casa ao lado da sua, em Brandon, as margens do lago Mead, na qual morei toda a minha infância e adolescência, a meu pai, e o melhor, sem cobrar nada.
Na noite do meu nascimento, o senhor Louis fez questão de levar minha mãe ao hospital mais próximo. Minha mãe sempre contava entre gargalhadas que meu pai ficou quatro horas escondido atrás de um jornal com medo de que o reconhecessem, mas que assim que a enfermeira o avisou de meu nascimento ele largou o jornal e entrou correndo no quarto com uma polaróide pendurada no pescoço. Colou seu rosto ao dela e tirou a foto. A foto ficou igualzinha a do jornal. Resumindo, ele não pode mostrar a foto a mais ninguém.
Minha mãe recebeu alta dois dias depois de meu nascimento. Eu não. Meus pulmões não eram fortes o suficiente. Durante um mês lutei para sobreviver dentro daquela incubadora. Meu pai, por mais incrível que possa parecer visitou-me todos os dias. Ele preferia arriscar-se ao deixar minha mãe passar noites em claro no hospital. Para ele, ela devia descansar, mesmo sendo algo tão difícil fazer vendo o filho à beira da morte.
Meu primeiro dia em casa foi muito festejado. Foi o dia em que meu pai olhou para àquele jornal pendurado na parede e decidiu:

- Andrew. Ele vai se chamar Andrew.
- Mas Charles, Andrew não é o nome do...
- Isso mesmo Catarine. Andrew era o nome daquele horroroso ali.
- E você vai pôr o nome dele em nosso filho?
- Vou. Assim, quando meu filho crescer, todos vão ver o que é um homem bonito e vão concordar que ela deveria ter escolhido um homem bonito como ele, e não um garoto tão feio como aquele ali. Todos vão se lembrar do nosso Andrew, e não do Andrew horroroso.
- Pensei que você tinha deixado esse rancor de lado.
- Eu já deixei. Mas ele nunca deixou a feiúra de lado, não é?

Eu não vou negar que a moça da foto era bem mais bonita que o rapaz, o tal Andrew. Seus cabelos eram loiros, cumpridos até a cintura, seus olhos verdes lembravam as águas das praias do Caribe. Já o tal Andrew, era magricela, tinha os olhos grandes que de forma alguma combinavam com seu rosto, além de orelhas que pareciam ter sidas tiradas de outra pessoa e implantadas nele.
O fato de ter o mesmo nome dele nunca me agradou muito. Às vezes acho que meu pai me usou como uma forma de nunca esquecer o passado, ou, de pelo menos, não permitir que eu esquecesse o passado. E querem saber? Funcionou. Durante anos o outro Andrew, o feio, o morto na foto, fez parte dos meus pesadelos. Toda vez que acordava assustado, prometia a Deus que seria uma pessoa boa e pedia a ele que nunca me deixasse presenciar a morte de alguém. Funcionou por muito tempo. Até o dia em que vi Lorenzo partir.